Regressão



Dinamitar o poço e a viela, caminhar o beco e encontrar a saída, tão natural, óbvia, escolher as janelas como quem decide partir o vidro pelo significado não pelo conteúdo. Desbravar. Romper a calidez com um sopro impregnado, ébrio como só quem experimenta a última hora da noite e despeja a madrugada, esse lixo que acorda o mundo e desafia a maldição. O óbice, o bloqueio nascido das dúvidas e dos recuos, é agora corpo, fluídos, carne e ossos, gelatina com alma, pensamento, esquecimento e probabilidade. Fora desse universo pequenino, toques de dedos e risinhos, chávenas bebidas até meio e convenções desnecessárias, existe o limiar da conclusão, o fecho, o climax transferido do sangue de cobra para as zonas reconditas do cérebro. Aí, nesse refúgio venial, espalham-se as notas florais do objectivo. O imediato, o orgânico, aquele que se distingue pela pressa ou o vagar intrincado.

Natura



Cortejar o regresso como se o mito e a raíz dependessem de um mero olhar. Regressar e partir outra vez, subjugando a indecisão em vagares de plumas e taças borbulhantes como se o dia fosse aquele dia. E acordar com os olhos na névoa de um branco artificial, sentidos entretidos em focar o tempo perdido sem saber que tempo é esse ou se os ponteiros deram alguma volta a mais. Abrir portas e fechar corredores num labirinto de geometrias que o gesto predefiniu. E ao chegar, repetir, sentir caminhos e becos de mil saídas mesmo se a parede alta o quiser impedir. Nos mitos e raízes encontrar algo que se deu como perdido, porque pareceu perdido, algures na gaveta de veludilho verde escuro como o improvável tem sabor a lima e alguma framboesa tresmalhada e demasiado doce. Quero a descoberta. Conhecê-la, agarrá-la com ambas as mãos, deslizar-lhe os dedos e senti-la minha. Como uma certeza que a língua reconhece e os lábios certificam.

Check-in



Faltei à promessa. Da forma mais vil que conheço. Troquei o Dr. Pepper com o Charlie de Battery Park, por um pedaço de luxo e evasão. Troquei o sal de um domingo por uma mistela açucarada, restos de caramelo que se pegam ao sabor por toda uma semana. Entorno os remorsos no primeiro copo no bar e deixo-me na penumbra, entre garrafas de vinho e um ecrã farto de estatísticas desportivas. Mudei-me para um hotel no Upper East. Por uma noite. Talvez duas. Apeteceu-me um quarto forrado, um cadeirão de costas altas, um jacuzi no quarto e um roast-beef banhado a Pélaquié. O doce, logo se verá. Vendi dois contos. Violentos, quase a escorrer sangue. Mereço, portanto. Não mereço, pela mentira. Comprei uma camisa branca que pretendo deixar no quarto, quando sair. Não guardarei provas. O fato escuro é uma pele de estimação. Pelo menos por estas bandas. No meu bairro não seria reconhecido. Não sei se quero tanto. Sinto-me refastelado. Um jantar propositadamente pesado. Arremesso-me nababo no passeio ventoso, noventa graus à esquerda, tabaco grosso nos dedos e um destino de ocasião, onde em tempos observei pernas nuas e lábios pagos. Amanhã ou depois de amanhã. Daqui a duas horas, verei. Até pode acontecer não regressar esta noite.

(in New York Stories)

Um minuto de silêncio



Harpejos cor-de-rosa, sujos, sujíssimos de fuligem e colcheias muitos tons acima. Corro rua abaixo, mesmo sem declives nem colinas para justificar os crimes. Cada matraquear de cada passo, ao compasso de cada minuto silencioso gritado nos meus auscultadores, onde qualquer amanhã é ínfimo e desnecessário. Tudo acontece agora, já, num corrupio de ordens e sinais de trânsito, até dentro dos elevadores em idiomas estranhos que cada um de nós, os vivos, não entende. Existem os pequenos-almoços, os acordares em camas estranhas, os bancos vazios esperando os ébrios, os velhos confusos ao não encontrarem o caminho de volta a casa... Ainda ontem era aqui, ainda ontem existia. Não mais. Existem os cafés com nome italiano, os sapatos de borracha com nomes inventados, as cores desconjuntadas, os casacos sem botões, as mulheres sentadas em passeios enfeitados de outras mulheres. Mais. Existem ruas. Ruas escuras e ruas claras. Ruas pretas e ruas brancas. Raras as de dois tons. Impossíveis, as de três cores. E existem hotéis. É preciso adormecer cada um dos comensais. Abrir-lhes a cama e mergulhá-los em formol. E esquecê-los, depois de feito o molde.

- Vais cantar tudo isso?
- Recitar...
- Desculpa?
- Ok, berrar tudo isto!
- Ah, cool.

Tempo de noite



Encontrei-a na primeira excursão ao Lucky 13. Óbvio aquele tartan curto e o blusão de cabedal para me prender os olhos por muito tempo. O suficiente para ser surpreendido. Gostamos de canções trocadas. Ela sim, eu não. Eu sim, ela nem por isso. Depois de algumas horas de desencontros, fixámo-nos no álbum mais improvável, que afinal partilhamos. Tudo. Da capa ao arrepio da voz rouca. O fascínio é isto. Um gatilho ínfimo para os demais. Era tarde quando decidimos enfrentar a chuva e procurar um táxi. O apartamento à sorte e ouvir juntos o disco. Não nos beijámos uma única vez. Não pensámos sequer em mergulhar um no outro. Apenas atirar as almofadas para o chão e acompanhar cada canção com tabaco e cerveja. E sobretudo olharmo-nos profundamente. Na sexta canção, a minha preferida, marcou-me as costas da mão com as unhas. Na última, provoquei-a ao longo do braço. Permitimos o vinil arranhar alguns momentos. Deixámos um sorriso suspenso. Sentimos uma ternura impossível. Um de nós levantou-se, tocou ao de leve no cabelo do que permaneceu no chão. Ao fechar a porta, esperou qualquer coisa. Tudo o que acontecesse mais, seria exagero.

(in New York Stories)

52 em Nova Iorque ou em qualquer lugar



Vou evitar a palavra mulher. Num propósito tão de propósito que admito chatear. É assim, habituem-se. Tudo porque me consegui convencer que existe uma Effie, uma Madge, mais uma Mabel e uma Biddie. Todas vivem. Sei como se doesse. São reais. Quero que sejam. Nessa intenção de partir numa cruzada onde a fé inclui 52 raparigas e não saber onde se escondem, onde se mostram, onde esperam alguma coisa que as faça rir à gargalhada e sentir vida ao longo da pele. Obrigo-me a descobrir a Tina Louise, a Hazel e sem dúvida a Mavis. Já passei por elas e lhes sorri sem me olharem. Já as bebi numa chávena de café ou num mojito. Vejo-as durante a noite enquanto durmo o seu sono. Tenho como missão convertê-las ao destino. Um que lhes reserve um minuto dos meus olhos. Preciso provar os lábios gulosos da Wanda, focar os olhos verdes da Janet, segredar três linhas de poema à Ronnie, oferecer cerejas à Reba. Invejo quem já deu a mão à Kate, quem cravou um cigarro à Cindy, quem beijou apaixonadamente a Crystal. E quem leu ousadias na inocência provocante da Candy. Sinto a fome desorganizada de demasiadas direcções. Amedronta-me a possibilidade de confundir cores e aromas. Tenho terror de encontrar cada uma das 52 e não lhes conhecer a história. Preciso tanto de ler cada uma delas, com todas as vírgulas e entrelinhas. Apressar o passo ao ritmo da Mercedes, ver esvoaçar o vestido longo da Joan, revelar um segredo à Betty, perguntar uma banalidade à Brenda. Acreditei por um segundo ser possível encontrá-las num só dia. A todas. Cortar às fatias as vinte e quatro horas, servi-las com especiarias e esperar que o vento as descubra por mim. Ou lhes diga que as espero. Que tenho uma canção guardada para a Suzie, uma tarde de cinema para a Anita, uma noite de amor com a Phoebe. E num arremedo final de devoção, entregar a última página, do último livro, à Jackie.

(in New York Stories)

Tempo tempo tempo



Nunca cheguei a conhecer o seu nome. Chamava-se em algum dizer oriental, por muito loura que fosse. Foi cantora ou vocalista punk. Não tenho a certeza qual. E isso é importante. Foi muitas outras coisas, como se coisa fosse pessoa. Quando a encontrei estava sentada no chão, com uma garrafa de água a meio e um livro de capa preta. Eu levava os ouvidos ocupados com algo e sentei-me ao lado dela, com a naturalidade da inconsciência. Pareceu-me um sítio cómodo. Havia sol e gente a passar. Interrompi com uma pausa a canção que estava a ouvir e pedi-lhe um gole de água. Sem palavras, disse-me sim com um gesto. Agradeci com uma palavra que ela não conhecia. Sorriu com os olhos. Voltei à canção, a uma página de bloco e uma caneta. Escrevi 3 linhas e ofereci-lhe. Levantei-me e estendi-lhe a mão. Quando lhe peguei, dei apenas um ligeiro beijo junto ao nó do indicador. Continuei na direcção que tinha decidido antes de a encontrar. Continuei com um sorriso nos lábios difícil de cair. Cairá com o tempo.

(in New York Stories)